Tudo está bem se começa bem
Se a formação que se adquire na escola é crucial, a fase pré-escolar é mais ainda. Isso o francês André Lapierre defende com unhas e dentes. Especialista em Educação Infantil, ele ressalta o valor da primeira infância. Segundo ele, entre 0 e 3 anos, é que se cristaliza a personalidade de alguém. É nessa faixa etária que a atuação dos adultos é mais decisiva na formação de crianças saudáveis e adolescentes equilibrados.
Mais de 1.500 (ou 28%) dos municípios brasileiros não têm sequer uma creche. Esse dado é do Censo da Educação Infantil 2000. Até pouco tempo, as creches — destinadas ao atendimento de crianças de 0 a 3 anos — faziam parte dos programas de assistência social. Sua integração ao sistema educacional só se deu a partir de 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional.
Para um psicomotricista relacional como o francês André Lapierre, prova maior de desperdício do potencial infantil não há. Faz 35 anos que ele se dedica a aperfeiçoar uma técnica — criada por ele próprio — que permita a pessoas de todas as idades expressarem seus conflitos e superá-los. Começou investigando crianças já crescidas com dificuldades de adaptação social e escolar. Mas logo se rendeu à convicção de que esse mal se combate pela raiz, isto é, na primeira infância.
“Tomei consciência de que, ao expressar problemas psicológicos aparentemente atuais, elas [as crianças] estavam, na verdade, escondendo conflitos anteriores, mais profundos”, diz. “Então, cheguei às crianças dos dois primeiros anos, que de fato estão construindo sua personalidade”, lembra. Segundo ele, a transformação por que passam crianças de 18 meses a 2 anos é tão marcante a ponto de a crise da adolescência não passar de uma espécie de reedição dessa fase. É quando crianças e jovens desafiam o poder do adulto.
A base da psicomotricidade relacional consiste em criar um espaço de liberdade propício aos jogos e brincadeiras. O objetivo é fazer a criança manifestar seus conflitos profundos, vivê-los simbolicamente. No âmbito educativo, esse tipo de atuação serviria de precaução contra o surgimento de distúrbios emocionais, motores e de comunicação que dificultem a aprendizagem. Na entrevista a seguir, André Lapierre explica os fundamentos dessa técnica e como os educadores podem se valer dessa abordagem com seus alunos.
André Lapierre veio ao Brasil a convite do Centro Internacional de Análise Relacional (CIAR) para o lançamento da edição em português do livro O Adulto Diante da Criança de 0 a 3 anos: Psicomotricidade Relacional e Formação da Personalidade (Editora da UFPR/CIAR). Na ocasião, ao lado de José Leopoldo Vieira, presidente do CIAR, ele nos concedeu a entrevista a seguir.
O que é psicomotricidade relacional?
AL — Essa pergunta é a mais difícil, porque a psicomotricidade relacional não é uma técnica que se possa aprender intelectualmente nos livros. É mais que um método, uma maneira de atuar, uma possibilidade de se estabelecer uma comunicação mais humana, mais verdadeira com qualquer pessoa, até mesmo com as crianças, desde a creche e a escola.
A propósito, o senhor é especialista em aplicar essa técnica em creches. Por que começar já na fase pré-escolar, de 0 a 3 anos? Quais são os benefícios?
AL — Na verdade, eu comecei com crianças maiores, mas tomei consciência de que, ao expressar problemas psicológicos aparentemente atuais, elas estavam, na verdade, escondendo conflitos anteriores, mais profundos. Era uma maneira de expressar algo que era de outro nível emocional, psicoafetivo. E, a partir desse momento, comecei a trabalhar cada vez menos no nível pedagógico, e mais no nível da comunicação profunda, com crianças da escola maternal, de 3 ou 4 anos. Como elas já tinham uma personalidade estruturada, então cheguei às crianças dos dois primeiros anos, que de fato estão construindo sua personalidade. Isto é muito coerente com o que dizem os psicanalistas, que a personalidade se constrói nos primeiros anos de vida. Então, finalmente resolvi trabalhar com creches. Essa foi uma experiência muito interessante. Penso que foi a primeira vez no mundo que um adulto resolveu buscar uma comunicação com crianças tão pequenas.
JLV — É muito importante voltarmos nossas energias para abrir possibilidades de atender crianças de 0 a 3 anos porque elas ainda estão construindo sua personalidade. Quanto mais contato tivermos nessa faixa etária, menos problemas teremos com crianças mais velhas.
Como se dá o atendimento? É correto dizer que é um método de observação da criança?
AL — Não se observa, não se põe a si mesmo fora da relação. Trabalhamos através de jogos, brincadeiras corporais. Tudo acontece sem palavras, de maneira totalmente livre, e sem julgamentos, juízos de valor. A criança brinca, por exemplo, com objetos variados: bolas, aros, etc. E, pouco a pouco, o psicomotricista participa, entra também na brincadeira e funciona como um parceiro simbólico.
O que significa ser um parceiro simbólico? O que o psicomotricista busca ao estabelecer esse tipo de contato com a criança?
AL — A brincadeira é algo simbólico, o psicomotricista vai entrar em contato com a criança nesse nível. É lá que atuam todos os fantasmas. Essa possibilidade de poder jogar, brincar, tudo de modo simbólico, permite à criança expressar seus conflitos em nível profundo, sem sabê-lo. Através do que ela faz, o psicomotricista busca decodificar: por que fez isso? Por que essa criança age assim? Por que a outra agiu de outro jeito? Para entendê-la, o psicomotricista procura decodificar o que se passa e a relação que isso tem com a vida dessa criança.
JLV — É a forma que você tem de ajudar uma criança a viver no simbólico aquilo que na realidade ela não pode viver. Ela dá vazão para o que está recalcado. A partir do momento que ela pode, por exemplo, matar simbolicamente, na brincadeira, ela percebe que não precisa realizar isso na realidade.
André — Isso dá resultados muito bons, inclusive com crianças que aparentemente são inacessíveis aqui no Brasil.
As escolas se queixam justamente de crianças que dão vazão à agressividade. Como esse tipo de comportamento é encarado pela psicomotricidade?
AL — É fundamental. O que se passa com os pequenos até 18 meses, ou entre 18 meses e dois anos, é que as crianças não têm pulsões agressivas. Elas têm necessidade do adulto para serem acariciadas, compreendidas, para estabelecer uma relação afetiva. Aos 18 meses ou um pouco além, isso muda totalmente. Com o mesmo adulto, que tenha a mesmas relações e atitudes, a criança começa a agredi-lo, a puxar-lhe o cabelo, a barba.
Aparece, finalmente, a pulsão de violência, o desejo de matar-lhe, de matar o poder do adulto. E, para mim, esse é o primeiro instante em que ela se vê dona de identidade. Com isso, a criança quer dizer: “Eu tenho meu próprio desejo, não tenho o seu desejo”. E, após essa primeira fase de destruir, logo vem uma segunda fase de domesticar. Depois de exercer esse poder sobre o adulto, ela o transforma em cavalo, num cachorrinho ou num gatinho que se afaga, que se dá de comer. Isso tudo corresponde muito ao que dizem os psicanalistas sobre as duas fases da agressividade. Na vida da criança, esse é o momento de dizer não. Aos dois anos, a criança começa a dizer “não quero”, e, em seguida, vem a fase dos caprichos: “quero fazer isso”, “quero fazer aquilo”. Essas duas fases nós vivemos na psicomotricidade relacional e, para mim, é importante que se possa vivê-las simbolicamente para que isso não caia no nível do inconsciente, onde não se pode controlar.
Já que o senhor tocou no ponto da fala da criança… O senhor disse, no início, que essa é uma técnica, o contato se dá sem palavras. A fala não interessa ao psicomotricista ou ele também procura interpretar o que a criança tem a dizer?
AL — Com os adultos se proíbe totalmente a comunicação verbal, porque os adultos a utilizam como defesa. Trabalhando com crianças, é preciso deixá-las falar porque é falando que vivem. Então, as crianças falam, mas o psicomotricista, não. Ou, então, fala o mínimo para não reintroduzir a idéia de que é o adulto quem manda, etc. Mas, ao final de uma sessão, as crianças falam, dizem o que querem, e o psicomotricista participa um pouco e, muitas vezes, expressa-se de forma poética.
O senhor tem acentuado a importância de criar esse espaço de liberdade em que o adulto deve intervir o mínimo possível. Não há nenhum tipo de restrição? Nada é proibido em uma sessão de psicomotricidade relacional?
AL — (Risos gerais) Isso é interessante. Bem, o que é proibido em uma sessão é fazer-se mal ou causar danos aos outros. No mais, pode-se até matar, desde que se trate de violência simbólica; pode-se fazer qualquer coisa simbolicamente. Não há nada demais, é simplesmente viver o que se quer viver. O importante é que não haja culpa. Haja o que houver, é preciso entender porque acontece isso. É porque a criança está bem, ou está mal? Por quê?
E a liberdade das situações de jogos e brincadeiras é que cria condições favoráveis para o desejo da criança se manifestar…
AL — Sim, ela se sente aceita e querida. Ela se comporta como é e não como deveria ser. Essa é uma dimensão importante. É como voltar à proteção da mãe. Nos adultos — e em crianças também -, há sempre uma regressão até esse momento, mais ou menos, em que ele tem uma relação privilegiada com a mãe.
JLV — Depois de um certo tempo de trabalho, todo mundo consegue entrar nessa fase do afeto, da compreensão, do pedido de ajuda, principalmente através desse tipo de relação. Todo mundo busca alguma coisa que não teve lá na infância. É uma possibilidade de reestruturar o que não foi bem estruturado.
Nesse contato em nível simbólico, busca-se, então, restabelecer a relação afetiva da primeira infância. A partir disso, o que se procura ensinar às crianças?
AL — O que queremos estabelecer é uma comunicação com a pessoa. Para o psicomotricista, uma criança de um ano, dois anos, já é uma pessoa que tem que ser respeitada. Não queremos fazer algo pedagógico, não temos nada para ensinar. Estamos ali para comunicar. É a criança que nos ensina muitas coisas.
Seria esse o conceito de disponibilidade, empregado por psicomotricistas, nas relações entre adultos e crianças?
AL — Sim. É esse “estar disponível” que procuramos trabalhar nos cursos de formação. Parece fácil, mas é muito difícil se desenvolver uma disponibilidade corporal, não apenas intelectual. O que é mais significativo é o contato corporal, é a possibilidade de a criança tocar o corpo do adulto e ele também se deixar disponível para o toque da criança. É a única relação pedagógica em que se pode tocar, inclusive os psicanalistas já falam da importância do corpo…
O que o adulto — um professor, por exemplo — pode aprender, através dessa abordagem de disponibilidade, para melhorar sua relação com as crianças?
AL — Eu digo sempre que o problema da comunicação entre professor e aluno não é do aluno, da criança, é um problema do adulto. É por isso que meu último livro se chama o Adulto diante da criança de 0 a 3 anos (Editora da UFPR/Ciar) e não o contrário. O que penso ser original nessa discussão é o fato de o adulto não se relacionar com o poder de ensinar, de saber o que se deve fazer, mas se colocar como parceiro para receber, mas do que para dar. Nessas condições, pode-se estabelecer uma relação totalmente diferente.
Que tipo de problemas as crianças a partir de três anos que estão em idade escolar podem apresentar por não terem exercido esse tipo de relação ou por não se sentirem queridas e aceitas pela família?
AL — Isso depende, é claro, de tudo o que tenham vivido em sua primeira infância, mas todos esses conflitos se alojam no inconsciente. Elas não são conscientes de seus problemas. Elas os projetam e os expressam de outras maneiras, inclusive durante a adolescência. Para mim, a adolescência é a reprodução da crise dos 18 meses, em um nível mais intelectual, claro, mais secundário. Mas, no fundo, é como se você retomasse os conflitos da primeira infância.
No Brasil, há projetos de arte-educação que acolhem jovens vítimas de maus-tratos, abandonados durante a infância… A proposta é superar esse conflito através da expressão artística. O senhor vê alguma semelhança disso na psicomotricidade relacional?
AL — A psicomotricidade é mais completa porque, através do corpo, pode-se atingir níveis muito mais arcaicos e profundos. Mas são coisas que fazem parte da mesma onda, que é a expressão do inconsciente, do que a criança pode expressar livremente pelo jogo, pelo corpo.
A propósito, o senhor já desenvolveu ou conhece projetos que utilizem a psicomotricidade relacional para atacar esses conflitos de adolescência?
AL — Eu, particularmente, não trabalho com adolescentes. Trabalho com pessoas de quatro meses a oitenta anos, sempre com crianças (risos). A adolescência é um momento com que não trabalho porque não sei o que fazer. Porque eles estão saindo da infância, então não querem voltar a ela. Não querem regressar. Por outro lado, estão em uma fase de modificação do seu corpo, estão fazendo a descoberta da sexualidade, não sei como entrar nesse momento. Mas isso são motivos pessoais, porque há outras pessoas que trabalham com isso. Para mim, os mais importantes são os primeiros anos. Se tudo se passar bem nos primeiros anos, a crise de adolescência vai se passar melhor.
E como costuma ser aplicado esse trabalho nas escolas brasileiras? Há um espaço e um tempo programado para sessões de psicomotricidade relacional?
AL — Normalmente, na maioria das escolas onde se faz algo — não são tantas -, há um momento dedicado à psicomotricidade relacional, com sessões de uma hora e meia, mais ou menos, a cada semana. Os professores têm de participar ou se interessar pelo que se passa, pelo comportamento das crianças nessa situação.
Teoricamente, há um espaço, um tempo para a psicomotricidade relacional, mas isso não impede que haja escolas que vão além, em que toda a escola pega o espírito da psicomotricidade relacional, que busca, mais do que ensinar, comunicar e ajudar as crianças a se comunicar, a estar com os outros, em que os conhecimentos intelectuais estão integrados em um contexto mais geral.
O senhor citaria alguma experiência pedagógica no Brasil que tenha aplicado os conceitos da psicomotricidade relacional de forma integral?
AL — Há uma em Fortaleza, a Escola Espaço Infantil, que trabalha, de fato, com toda a comunidade escolar, com alunos, pais, enfim, é totalmente baseada nessa comunicação profunda que propõe a psicomotricidade relacional.
Como tem sido a demanda, o interesse dos professores por esse método?
JLV — Hoje, no Brasil, ela está sendo bastante requisitada, existe uma demanda, em nível nacional, de pessoas que passaram a conhecer esse trabalho e que puderam ver alguns resultados. Eu cito como exemplo Fortaleza, onde uma escola — a Escola da Tia Lea — pôs outdoors na cidade com uma única mensagem: psicomotricidade relacional, matricule seu filho. A chamada é só essa. Estão chegando a usá-la até como marketing, porque é um diferencial. Além dessa e do Espaço Infantil, tem também a Casa de Criança e um colégio grande da cidade que pediram que lhes fossem encaminhadas duas psicólogas, mas que deviam ter experiência com psicomotricidade relacional. Então, está começando a virar um pré-requisito em Fortaleza. Mas a psicomotricidade relacional não interessa apenas aos professores. Nos cursos de formação, há médicos, psicólogos, todas as pessoas interessadas na comunicação humana em qualquer área do conhecimento.
O que é preciso para o professor ou o interessado se capacitar e atuar nessa área?
AL — Para fazer esse trabalho, assim como o psicanalista, ele tem de passar por uma formação de análise corporal como uma implicação pessoal, porque não vai aprender nos livros. Não adianta ele ler todos os livros de André Lapierre se ele não souber trabalhar o seu corpo, sua comunicação.
Essa característica não dificulta a inserção desse conhecimento nos cursos de formação de professores?
AL — Sem dúvida, é difícil integrar isso à universidade, dentro dos estudos clássicos. É como ser psicanalista: você precisa fazer sua psicanálise e não, passar por um curso na universidade. Toda essa parte de formação pessoal não entra nos cursos habituais. Essa é a dificuldade que temos. Para mim, todos os professores teriam de passar por uma formação psicomotriz, uma formação em comunicação. Faz-se uma seleção de professores unicamente seguindo critérios intelectuais. Trabalho em muitos países e tenho visto tantos professores com personalidade patológica e, às vezes, muito patológica, que ainda assim passaram por concursos de professores. Para mim, antes de intelectual, devia haver uma seleção de acordo com as personalidades. Mas isso não é exclusivo dos educadores. Todas as pessoas que trabalham com a relação humana teriam que passar por uma formação desse tipo.
O senhor diria que a escola, de modo geral, é um ambiente que não é aberto à afetividade dos alunos?
AL — Sim. E não somente no Brasil, mas no mundo todo. Na França mais ainda, eles são muito intelectuais e pouco afetivos. Todos os criadores desse método são franceses, mas nós não podemos trabalhar na França. Para nós, a psicomotricidade é um produto de exportação (risos). Trabalhamos um pouco na Bélgica, mas basicamente em países latinos, na Espanha, na Itália, na América Latina, Argentina, Brasil e México. Em países anglo-saxões, não há nada. Não que seja restrição nossa, eles é que não nos convidam. A única experiência que tive foi no Canadá, do lado francês. Eles falam francês, mas pensam como americanos. Lá, passei um ano na Universidade de Montreal e não me sentia em minha cultura, diferentemente do que acontece no Brasil, na Argentina, no México, onde há uma diferença de língua, mas é minha cultura.
O que o motivou a se dedicar a essa área, mesmo ela não sendo valorizada dentro do seu próprio país?
AL — Não sei. Eu me pergunto agora, depois de minha experiência internacional, se a França é um país latino ou não (risos). Há muita resistência na França. Antes, havia uma formação do tipo para paramédico, em que psicomotricistas trabalhavam em nível patológico. O Ministério da Educação Nacional criou um diploma de psicomotricista para trabalhar nas escolas. Mas há quatro ou cinco anos, ele foi suprimido, não há mais nada.
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