A vida, em geral, não facilita para ninguém. Mas para o nosso herói da foto, ela complicou um pouco mais. Nas lembranças mais remotas, José Leopoldo Vieira traz a memória de um pai viciado em jogos. Aos seis anos se viu fugindo com o pai, que, mergulhado em dívidas, abandonou a esposa e levou o menino para viver de canto em canto, tendo que trabalhar e conviver com ambientes de bares e com sucessivas madrastas. Mesmo assim, a lembrança que tem do pai é muito afetiva, pois, apesar de suas dificuldades, ele nunca abandonou o filho. Aos 11 anos, perdeu o pai em função de uma diverticulite, passou a viver na casa de parentes e reencontrou a mãe. Porém, após anos de afastamento, resgatar a relação materna não foi tão simples assim. Já adolescente, deixou a casa da mãe e chegou a dormir alguns dias nas ruas, em Curitiba, ganhando a vida como engraxate, lavador de carro, padeiro, torneiro mecânico, estafeta, entre outros.
O tempo passa. De história em história, vivendo de favores e tendo passado por experiências inimagináveis, como a de ter de dormir por meses em um banheiro de uma escola, Leopoldo construiu seus caminhos até chegar no Exército. Venceu a miopia, a falta de base familiar, viveu muitas vidas numa só e finalmente tornou-se membro da importante Brigada de Paraquedistas das Forças Armadas, no Rio de Janeiro. O ciclo se fecha, surgem novas oportunidades e ele forma-se educador físico e, mais tarde, pedagogo pela Universidade Gama Filho.
Numa dessas amarrações do destino, quando era professor do Instituto Nacional de Educação para Surdos, conheceu a Psicomotricidade Relacional, criada pelo francês André Lapierre. Mergulhou, entregou toda sua energia e seus fantasmas a essa então novidade no país e se tornou o herdeiro afetivo e intelectual de André Lapierre. Nessa época, Leopoldo conheceu a filha de André, Anne Lapierre, de quem viria a ser o principal parceiro de trabalho no Brasil. Leopoldo viu tantas transformações em sua vida e na vida dos outros que decidiu fazer dessa a sua missão.
Hoje, com Mestrado em Educação Especial pela UFRJ, Pós-Graduação em Movimento Humano na Universidade de Boston e um título de Doutor Honoris Causa pela Associação Brasileira de Medicina Psicossomática do Distrito Federal, já formou mais de 1.000 profissionais das áreas de Educação, Saúde e Recursos Humanos em Psicomotricidade Relacional. É muita gente, mas ele destaca que o seu maior prazer é auxiliar as pessoas a contatar com seu desejo e com seu próprio superpoder.
E você, já parou para pensar nisso? Em que ponto está sua própria história? Qual o seu poder? Inspire-se nesse nosso bate-papo com o Professor José Leopoldo Vieira sobre a sua pulsão de vida e o que tem feito para colocá-la a serviço do seu bem-estar e de quem está próximo a você.
Qual a maior fraqueza das pessoas atualmente?
O que percebo é que as pessoas têm uma falta, mas não sabem identificar o que é. Não conseguem mobilizar realmente seu desejo em função de preenchê-la. Ocupam-se com excesso de ter e fazer e, com isso, se esvaziam mais e mais. Quando as pessoas nos procuraram, não sabem muito bem por que vêm. Há um mal-estar geral. Elas têm um trabalho, uma relação de amor, têm os bens materiais, mas continuam com uma insatisfação muito grande e qualquer dificuldade, qualquer tráfego um pouco congestionado, lhes provoca uma angústia, uma ansiedade, um sentimento de que falta algo.
E o que é isso?
Essa falta está ligada ao afeto. As relações deixaram de ser afetivas para estarem focadas no interesse, sempre em torno do que o outro pode proporcionar. Perdeu-se uma parcela significativa de autenticidade e, com isso, a verdadeira relação de amor e de parceria. Mas André Lapierre descobriu há muitos anos que o que a gente sente, na verdade, é a falta no nosso corpo do corpo do outro. Falta uma comunicação verdadeira, um abraço fraterno, o olho no olho. Por isso a Psicomotricidade Relacional tem como base em suas intervenções a comunicação corporal, uma vez que ela está na gênese da constituição de nossa identidade.
Como se dá essa intervenção corporal na Psicomotricidade Relacional e na Análise Corporal da Relação.
Investimos no resgate das relações primárias da infância. Em um espaço lúdico, desenvolvido em grupo, priorizamos o jogo espontâneo, pois ele favorece a expressão primária do inconsciente e possibilita que cada um presentifique em suas ações conteúdos inconscientes e significados profundos relacionados à sua personalidade. Assim, as tensões são reduzidas e o sujeito passa a se engajar no processo de investimento na qualidade de sua vida afetiva.
O que por exemplo?
Por exemplo, uma pessoa pode começar a perceber a forma como lida com sua própria agressividade, que é diferente de violência. A agressividade a que me refiro é um dos componentes da pulsão de vida. Ela nos mobiliza, nos faz aprender, acreditar, lutar, amar, desejar. Mas para alguns a agressividade pode estar reprimida e o sujeito agride a si mesmo. Para outros ela pode estar voltada para fora e a agressão se dirige para o entorno, contra tudo e contra todos. Com os atendimentos, a pessoa contata com a possibilidade de vivenciar e elaborar a sua agressividade dentro dos limites da expressão simbólica para, com isso, investi-la em situações mais construtivas em sua vida. E aí o discurso muda: “eu existo, eu defendo, eu desejo, eu conquisto, eu sou, eu posso”.
O desejo é um ponto importante a ser trabalhado?
Sim, com certeza. As pessoas questionam-se sobre seus desejos, pois estão diante de uma série de interrogações que geram impasses em sua vida: “O que estou vivendo hoje é em função do meu desejo ou do desejo do outro? O que estou fazendo aqui nessa relação? Qual o sentido do meu trabalho? Será que é o meu desejo?”. Muitas vezes esse desejo se encontra cristalizado e colocá-lo em movimento é fundamental para que se possa investir com mais prazer na vida. O que percebemos é que uma vez que a pessoa encontra as respostas para suas interrogações, há uma mudança de posição diante da vida, ou seja, ela sai do lugar de refém de sua própria história e assume o lugar de sujeito desejante.
Como virar esse jogo?
Baixando as defesas contata-se com a possibilidade de resgatar o que é seu. A “sua” vida, a “sua” relação, o “seu” sonho. O medo de arriscar levou muita gente a parar de sonhar. Há pessoas que chegam ao ponto de, apesar de insatisfeitas, permanecerem anos num trabalho mesmo sem gostar do que faz, sem gostar das pessoas, do salário. Muita gente entra na famosa zona de conforto porque não consegue assumir o desejo ou nem sabe que desejo é esse e não consegue arriscar. Porque têm medo.
Mas existe um caminho para baixar as defesas?
Sim, na Psicomotricidade Relacional e na Análise Corporal da Relação fazemos isso por meio de vivências simbólicas mediadas pelo brincar. O jogo espontâneo e livre de julgamentos, que é proposto ao grupo, nos permite revisitar a infância e suas histórias, seus sabores e dissabores para, com isso, ressignificar emoções, sentimentos e memórias primárias.
Investir nos desejos é a fórmula para lidar com os medos?
Sim, afinal quem não tem medos, fantasmas? Quem não tem medo de ser traído, de não ser amado, de não agradar ao outro, de ser rejeitado? Para isso, é necessário assumir algo que se chama desejo. O desejo de ser amado, de existir para o outro, de dar certo na vida. Olha quantos desejos! Assumir o desejo implica mobilizar a pulsão de vida, a agressividade positiva, que nos faz sair da cama, que nos faz sonhar, imaginar, viver o prazer. Eu considero a agressividade uma das coisas mais importantes da nossa vida e falo porque vivi isso na minha própria pele.
Existe um outro lado dessa pulsão?
A pulsão é um processo dinâmico que impulsiona o sujeito na direção de um objetivo. A pulsão de vida tem um caráter construtivo ao passo que a pulsão de morte, quando voltada para o interior, tende à autodestruição e quando dirigida ao exterior manifesta-se sob a forma de violência ou destruição. Mas as pulsões de vida e de morte atuam de forma simultânea em consonância com o princípio de conservação da vida. Por exemplo, numa depressão profunda o sujeito está sob a atividade da pulsão de morte. Os casos de suicídio têm aumentado drasticamente em Curitiba, ou seja, a pulsão de morte prevalece em relação à pulsão de vida a ponto de a vida perder o sentido.
Você se dedica a potencializar essa pulsão de vida?
Sim, só ela é capaz de capacitar as pessoas para assumir seus conflitos, lidar com seus fantasmas, assumir os seus desejos e lidar com seu prazer sem culpas. A pulsão de vida é fundamental para que as pessoas construam sua vida de uma forma realmente saudável.
Você vivenciou esses dois momentos?
Sim, eu tinha uma agressividade que, muitas vezes, se expressava de maneira destrutiva. Eu era contra tudo e contra todos. Complexado, revoltado, achava que Deus não existia porque me deixou órfão de pai tendo que conviver com inúmeras madrastas. Eu saía para a rua com 14, 15 anos para brigar. Depois que eu conheci essas metodologias pude elaborar e ressignificar minha posição diante da vida e assim canalizar minha energia de forma construtiva.
Não por acaso o livro que você prefaciou de André Lapierre, Da Psicomotricidade Relacional à Análise Corporal da Relação, tem um iceberg na capa, certo?
Sim, todos somos vulneráveis e todos apresentamos só uma pequena parte do que trazemos como história de vida. A grande parte das respostas está no infantil que há em nós, nos excessos e nas faltas que vivenciamos. Quantas pessoas você conhece que são superboazinhas, que fazem tudo para agradar a todos? Muitas vezes elas têm um desejo de reconhecimento que vem lá de trás. Talvez o desejo de ser vista e admirada, por exemplo, por um pai que só sabia criticá-la.
A terapia busca conhecer um pouco mais desse mundo submerso?
Na verdade esse “mundo submerso” está presente em todos os momentos, nós é que não sabemos percebê-lo. A terapia tem esse objetivo, sim, qual seja, de tornar consciente para o sujeito os processos inconscientes dos quais ele é refém.
Para finalizar, qual é o seu superpoder?
Acho que meu poder é o de amar incondicionalmente. Eu me enlaço com meu trabalho de uma forma afetiva e ele passa a ter um significado para mim e para o próximo. Nas minhas intervenções há uma ressonância afetiva baseada numa comunicação autêntica. Assim minhas ações tocam o outro e o ajudam a ressignificar suas questões e a ter um novo registro, mais saudável, mais harmônico. Porém, é importante ressaltar que não se trata de uma técnica. A intervenção é profissional e controlada, mas possui uma carga tônico-afetiva na qual me engajo em função da demanda do outro. Em nossa prática, trabalhamos com nosso saber teórico, com nosso saber prático, mas principalmente com nossa sensibilidade. Enfim, ame sem culpa e sem desculpa. Quem faz isso sempre tem um superpoder.
Publicado 15 de dezembro de 2015 – Por: Revista Viver
Fotos: Patricia Amancio[pb_builder]