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A Clínica em Psicomotricidade Relacional

O presente artigo versa sobre a Clínica Psicomotora Relacional, campo que se utiliza do saber prático e teórico da Psicomotricidade Relacional para promover a saúde emocional de crianças e adolescentes que apresentam algum tipo de sofrimento psíquico. Em primeiro momento abordam-se as especificidades do atendimento a crianças e o elo entre seus sintomas e a dinâmica familiar. A seguir, ressalta-se que a clínica da Psicomotricidade Relacional com adolescentes é o espaço para a elaboração dos lutos infantis, o reencontro com o desejo, a retificação da própria subjetividade. Por fim, enfatiza-se que a unidade corpo e psiquismo narram a historia desejante do sujeito e, por meio da linguagem do corpo, do jogo simbólico e das relações transferenciais, as crianças e adolescentes elaboram seus conflitos e encontram uma outra amarração subjetiva que não a sintomática.
Palavras-Chaves: Psicomotricidade Relacional Clínica. Crianças. Adolescentes.

1. Introdução

O Ser Humano em seu processo de evolução psíquica depara-se com complexidades, a partir do momento da concepção até a vida adulta. Na atualidade, maior é o numero de pessoas que neste processo de nascer, crescer e morrer passa por situações traumáticas ou carregadas de significados que fazem de seu existir um sofrimento tanto para si como para aqueles com quem convivem.
Lapierre (1984) ressalta a falta do corpo no corpo do outro em sua proposta teórica e afirma que
“é essa falta renovada incessantemente e a ambivalência, o balanço constante entre fusão e identidade que entretêm a dinâmica de evolução da personalidade. Neste sentido pode-se considerar a busca a nível da dinâmica psicotônica e da expressão psicomotora como fundamental, pois, abre um novo caminho na exploração do inconsciente e dos mecanismos psicológicos complexos que sustentam o comportamento do ser humano.” (p. 138).
Este autor afirma ainda que a originalidade do método de intervenção psicomotora relacional está no fato de que enfatiza a problemática corporal que apreende diretamente o corpo em seu modo de atuar, reduzindo o foco na problemática essencialmente lingüística (LAPIERRE, 1984).
Deste modo na clinica psicomotora relacional considera-se que fraturas emocionais, em geral, marcadas na primeira infância, são conseqüências de vivências insuficientes da falta do corpo no corpo do outro, mãe ou seus substitutos.
Consoante este tipo de intervenção a criança e o adolescente são conduzidos pelos caminhos do corpo em direção ao desconhecido (causa do sintoma) que o faz sofrer. (GUERRA, 2008).
Deste modo, pretende-se abrir espaços onde seja possível revivenciar o fantasma de fusão corporal – segundo Lapierre aquele mais primitivo – para possibilitar o acesso a substituições simbólicas integradoras, e, conseqüentemente, ressignificar vivencias negativas. Isto facilita a elaboração e aquisição de estratégias relacionais para uma vida mais saudável (BATISTA, 2008).

2. A Clínica de Psicomotricidade Relacional

A clínica infantil em Psicomotricidade relacional compreende e trabalha “no nível da terapia psicomotora, as desordens relativas ao desenvolvimento da criança nas esferas motoras, relacionais, afetivas e cognitivas, tendo como referência o enquadre psicodinâmico da motricidade infantil”. (VIEIRA, BATISTA e LAPIERRE, 2005, p. 149).
Neste sentido, prioriza-se a utilização permanente e sistemática da atividade espontânea como meio de provocar e de analisar a relação. Ressalta-se deste modo o jogo simbólico, não verbal, num ambiente de liberdade, de criatividade e não julgamento. (BATISTA, 2008).
O ato de brincar é muito importante para a constituição subjetiva do sujeito graças ao seu caráter simbólico que o impulsiona rumo à subjetividade. No brincar, no qual se privilegia a comunicação não-verbal, o sujeito reatualiza e ressignifica sua história desejante, diminuindo a tensão que os fantasmas inconscientes sustentam. Winnicott (1975) leciona: “é no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação” (p. 79). O psiquismo se desnuda e se revela através de suas atuações corporais, dentro do simbolismo das brincadeiras, onde o real e a fantasia se confundem e novos personagens e novos destinos são traçados. No jogo simbólico constroem-se novas cadeias de significantes. (GUERRA, 2006).
De acordo com Vieira (1999) “o prazer vivenciado no jogo psicomotor é o substrato para a representação das emoções carregadas de significados e significantes”. E, ainda consoante o mesmo autor (2001), a Psicomotricidade Relacional oferece um espaço onde é possível “(…) deixar de intelectualizar os sentimentos”.
Dessa feita, na clínica psicomotora relacional busca-se auxiliar a criança e o adolescente a exprimirem a sua vida pulsional e a elaborarem seus conflitos. Possibilita-os se expressarem, imaginarem e viverem cenas e brincadeiras que passam à guisa de seus fantasmas, estabelecendo elos entre os elementos conscientes e inconscientes de suas diferentes produções. Trata-se de atualizar um passado que não é passado. Só depois de se revisitar as próprias origens é que não se está fadado à repetição dos sintomas. (GUERRA, 2008).
O psicomotricista relacional é o objeto sobre o qual se atualizam os medos, desejos, ansiedades, necessidades. Ele decodifica o dito corporal do sujeito e intervém, dando-lhe respostas que o auxiliam e encontrar o bem estar. Participa do jogo do outro, sem perder, no entanto, o contato com a realidade. (GUERRA, 2006). Em Psicomotricidade Relacional o corpo do terapeuta está implicado na relação com o outro. Essa ressonância tônica entre o corpo do psicomotricista relacional e o da criança possibilita que ela realize um reparo simbólico em sua vida psíquica. (LAPIERRE & AUCOUTURIER, 1984).
Tudo isto exige um grande rigor, nas intervenções, essencialmente pelo fato de estarmos corporalmente envolvidos na situação. Talvez o mais difícil, neste tipo de intervenção seja alcançar um diálogo tônico, decorrência de uma disponibilidade e autenticidade corporal psicotônica, o que lhe confere um valor e eficácia afetiva inestimáveis para a relação de confiança no compartilhamento dos próprios sentimentos com o outro. Deve, portanto, ser muito bem controlada ( BATISTA, 2008).
A demanda pela clínica está vinculada a uma queixa específica, ou seja, situa-se em relação ao pedido de ajuda, mas não perde de vista o seu aspecto preventivo, pois busca detectar a dificuldade da criança e do adolescente, sem esquecer seu potencial para se desenvolver. Trabalha-se antes de tudo, com o que eles sabem fazer. (GUERRA, 2008). Nessa mesma direção, Lapierre (1988) ensina: “Queremos trabalhar com o que há de positivo na criança; nós nos interessamos por aquilo que ela sabe fazer, e não pelo que ela não sabe fazer” (p. 19).
Dessa forma, o trabalho do Psicomotricista Relacional será o de, através da linguagem corporal, das relações que se estabelecem no setting e do jogo simbólico, promover uma outra amarração do sujeito que não a sintomática.
O primeiro passo na clínica com crianças é a entrevista com os pais. O primeiro contato marca o início do estabelecimento do vínculo afetivo e de confiança. Aceitação, não culpabilização e não julgamento à problemática da família são primordiais.
Deve-se investir na parceria com os pais para que se sintam contidos em suas angústias e culpas e encorajados a contribuir positivamente no processo terapêutico do filho. (VIEIRA, BATISTA e LAPIERRE, 2005).
O primeiro encontro é ainda o momento para o estabelecimento do contrato terapêutico (valores, número de sessões, compromisso, horários, entre outros). (VIEIRA, BATISTA e LAPIERRE, 2005).
Nas primeiras sessões com a criança o psicomotricista relacional obtém as primeiras percepções sobre ela. Pode ser realizada em grupo, ou individualmente. (GUERRA, 2006).
É importante a realização de encontros periódicos com os pais (a cada quatro ou seis sessões). Eles devem ter participação ativa no processo terapêutico do filho, além de ser um momento para receberem orientações.. (VIEIRA, BATISTA e LAPIERRE, 2005).
A evolução da criança é multifatorial, depende dos pai, dela mesma, da escola, de outros profissionais envolvidos e do psicomotricista relacional. Em alguns momentos pode haver resistência por parte dos pais, por maior que seja o desejo da melhora do filho, pois podem fazer uso da “doença” da criança para encobrir os próprios problemas. (GUERRA, 2006).
Encontros com outros profissionais e instituições são necessários para que se realize um trabalho multidisciplinar. A escola, onde o paciente estuda, deve ser visitada no mínimo, duas vezes por semestre. O sigilo deve ser garantido. Fala-se do conteúdo, através de uma linguagem acessível a todos, mas não do vivido. (VIEIRA, BATISTA e LAPIERRE, 2005).
Já a adolescência é um divisor de águas que reatualiza o drama edípico e abre as fronteiras para o enigma do desconhecido, onde o sujeito terá que assumir a autoria da trama do próprio destino. O complexo de Édipo, que foi vivido numa dimensão imaginária, passa a ser vivido, na adolescência numa dimensão simbólica. Há um enfrentamento do real do corpo, não mais pela via do imaginário, mas sim no campo da inscrição simbólica. (GUERRA, 2008).
É um momento da vida que encontra sua especificidade no fato de fechar um ciclo que vai da infância à vida adulta. Nisso o adolescente encontra sua razão de ser: a preparação da vida adulta, as modificações físicas e até a aptidão para a procriação. (GUERRA, 2008).
Na adolescência muda a posição de sujeito diante de si mesmo e do outro, o que implica na reconstrução de valores; muda a relação do sujeito com o seu desejo. O adolescente é um adulto que ainda não está reconhecido. Precisa afirmar-se diante do outro. (GUERRA, 2008).
De acordo com Sesarino (2004), a adolescência é dividida em três tempos: separação, liminaridade e agregação.
Na separação há a perda do corpo infantil e os lutos infantis. (SESARINO, 2004).
A liminaridade é o estar fora, o sentimento de não pertença, as identificações, os laços e as afinidades fora da família. É o momento em que se interroga e busca a clínica. (SESARINO, 2004).
A agregação é o retorno. É o que se espera da intervenção na clínica com a Psicomotricidade Relacional, ou seja, que o adolescente possa equacionar suas questões interrogativas. Quando isso não é possível é comum recorrer às drogas, suicídio, furtos, violência, entre outros. (SESARINO, 2004).
A clínica da Psicomotricidade Relacional com adolescentes é o espaço para a elaboração dos lutos infantis, o reencontro com o desejo, a retificação da própria subjetividade e a descoberta de novos ideais. Uma vez feitos os lutos, o adolescente abandona a divisão infância x adolescência e passa a assumir sua identidade. (GUERRA, 2008).
A psique primária é por essencial grupal; a vivência grupal é uma vivência psíquica, quaisquer que sejam as vicissitudes corporais verbalizadas nos grupos. Ela permite, a cada membro, projetar diversas partes de seu ego nos outros participantes. Assim, cada um poderá, alternadamente, rejeitar ou tentar dominar os elementos que condena em si próprio, ou tentar apropriar-se das qualidades daqueles que toma por modelo, o que facilita em grande escala o processo essencial de identificação. (DECHERF, 1986).
As sessões são semanais com duração mínima de 1 hora a 1 hora e meia, para crianças, e 2 horas para adolescentes com patologias não muito graves. Para aqueles com comprometimentos em nível de estrutura de personalidade devem ser realizadas duas sessões semanais (uma individual e outra em grupo). Tratando-se de crianças pequenas, deve-se observar o tempo que suportam permanecer dentro do setting. (VIEIRA, BATISTA e LAPIERRE, 2005).
Parafraseando Carvalho (2004), pode-se dizer que na clínica o mais difícil não é ouvir o paciente, é o psicomotricista relacional ouvir a si mesmo enquanto se encontre a ouvir o paciente. Faz-se necessário ouvir e compreender o paciente, em função de sua experiência alcançada com o estudo e a prática, para assegurar decodificações e intervenções e compreender o paciente, objeto de sua atenção, a partir se si mesmo, observação que sofre a abrangência do fenômeno da contratransferência.
 

Referências

  • BATISTA, M.I.B. (2008) – A Comunicação em psicomotricidade relacional: convergência entre emoção e motricidade. Revista Iberoamericana de Psicomotricidade e Técnicas Corporais, ISSN:15770788. Número 31. Volume 8(3). Artigo 11. (p.105 a 110). Recuperado em 23 de Julho, de 2010. www.iberopsicomot.net.
  • GUERRA, A. E. L. (2006) – Apostila do curso de Formação em Supervisores de Psicomotricidade Relacional. FAP – Faculdade de Artes do Paraná – Brasil e CIAR – Centro Internacional de Análise Relacional – Curitiba, Brasil.
  • GUERRA, A. E. L. (2008) – A Clínica de Psicomotricidade Relacional. Revista Iberoamericana de Psicomotricidade e Técnicas Corporais, ISSN:15770788. Número 31. Volume 8(3). Artigo 14. (p.127 a 130).
  • LAPIERRE, A. & AUCOUTURIER, B. (1984) – Fantasmas Corporais e Prática Psicomotora.Editora Manole. São Paulo
  • VIEIRA, J. L., BATISTA, M. I. B., LAPIERRE, A. (2005) – Psicomotricidade Relacional: a Teoria de uma Prática. Filosofart/CIAR. Curitiba.
  • VIERA, J. L., GUERRA, A. E. L., BATISTA, M. I. B. (2007) – Apostila do curso de decodificação em Psicomotricidade Relacional. CIAR – Centro Internacional de Análise Relacional – Curitiba, Brasil.
  • VIERA, J. L, BATISTA, M. I. B., DANIALGYL Jr., I. (2010 )- A Formação em Psicomotricidade Relacional. Revista Mosaico (no prelo). Rio de Janeiro.

 

AUTORES

Ana Elizabeth Luz Guerra
Mestre em Psicomotricidade Relacional pela Universidade de Évora, Portugal. Psicóloga, Engenheira Química, Especialista em Psicomotricidade Relacional pelo CIAR Curitiba (Centro Internacional de Análise Relacional). Atua como Psicomotricista Relacional no contexto clínico. Supervisora de Estágio no Curso de Formação Especializada em Psicomotricidade Relacional do CIAR Curitiba. Supervisora de Estágio do curso de Mestrado em Psicomotricidade Relacional, da Universidade de Évora, Portugal. Supervisora de Psicomotricidade Relacional nas áreas clínica e escolar. Formadora de Supervisores em Psicomotricidade Relacional.
 
Maria Isabel Batista Bellaguarda
Doctor Honoris Causa  em Psicomotricidade Relacional e Análise Corporal da Relação – Associação Brasileira de Medicina Psicossomática/DF. Especialista Pós-Graduada em Psicomotricidade Relacional – CIAR/ FAP; Analista Corporal da Relação – CIAR; Psicóloga Clínica; Formadora Pessoal, Supervisora de Estágio e Professora do Curso de Pós-Graduação em Psicomotricidade Relacional do CIAR; Sócia da Sociedade Internacional de Análise Corporal da Relação – SIAC América do Sul; Sócia da Associação Brasileira de Psicomotricidade Relacional – ABPR; Sócia Titular da Sociedade Brasileira de Psicomotricidade – SBP; Sócia da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática do Distrito Federal – ABMP/DF.
 
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